DO POEMA VISUAL À POÉTICA DO PLANO E DO ESPAÇO: ALMANDRADE I Curated by Marc Pottier
‘Un coup de dés jamais n’abolira le hasard’ (Um lance de dados jamais abolirá o acaso) é o título do livro poema de Stéphane Mallarmé, autor referência absoluta no mundo da poesia concreta. Nele existe um “Senhor” cujo navio está naufragando e que antes que este seja engolido pelas ondas, ele se propõem a lançar os dados como um último desafio a um céu que não ouve mais as suas preces. Trata-se de uma alegoria ao desabamento da ordem antiga e a chegada de um tempo de incertezas. Também poderia ter escolhido ‘échappée belle de l’art’ (se destacar na arte) estrofe que faz parte de um poema de Michel Seuphor sobre uma obra de Mondrian datado de 1928. O que realmente conta na obra de Almandrade é esta incerteza, sua permeabilidade diante do olhar, as subdivisões de sua partitura que se entrega aos destaques de seus desenhos ou esculturas, para as quais ele leva o seu público. Assim Almandrade propõem e este o interpreta.
Há 45 anos Almandrade, nascido em 1953, arquiteto de formação, é também teórico, jornalista, professor de arte em Salvador na Bahia… Como artista, sua obra faz malabarismo com esculturas e instalações, gravuras e desenhos. Desde os anos 1970, ele é o autor de vários livros e coletâneas de poemas. Antes, em 1974, havia editado a revista “Semiótica” *.
Ele nos conduz, a sua maneira, invocando o construtivismo, o minimalismo, letrismo e o conceitualismo. Essa é a razão pela qual sua criação atinge escalas maiores com seus poemas visuais. Se ele tem como origem a Bahia, sua obra tem uma vocação universal. Ele rapidamente inventou sua própria assinatura na qual se destacam as influências de Hélio Oiticica ou Lygia Pape em termos estéticos, ou de seu caro amigo Wlademir Dias Pino e Ferreira Gullar no mundo da poesia. Seus amigos mais velhos nutriram os seus pensamentos e pesquisas. E ele assimila estas fontes vivas para achar o seu próprio estilo e nos entregar uma obra que pode perfeitamente ser confrontada a dos prestigiosos artistas das gerações que o precederam.
Bataille, Jorge Luis Borges, Lautréamont, Sade, Bachelard, Machado de Assis, Italo Calvino, entre outros, são suas referências. Em 1973, ele encontrou em Salvador Augusto de Campos (um dos fundadores do movimento de Poesia Concreta no Brasil, assim como da revista literária Noigandres), e foi também amigo do famoso poeta, tradutor, crítico e ensaísta Décio Pignatari. “A linguagem poética difere da linguagem que utilizamos para a comunicação diária. Cada poeta explora a linguagem na busca de um acontecimento inesperado, de uma experiência singular” dizia Pignatari.
Necessário lembrar que a Poesia Concreta nasce simultaneamente em diferentes países do mundo nos anos 1950, como um movimento de vanguarda. Trata-se de uma arte carregada de tendências experimentalistas que nasce a partir de novas formas de organização do texto. Esse movimento poético se distancia das estruturas convencionais. Ele formou um novo paradigma poético, influenciado pelos movimentos dada, modernista e futurista, assim como por grandes pensadores e poetas como Stéphane Mallarmé (a grande referência desse movimento), Apollinaire, Lewis Carroll, Alfred Jarry, Ezra Pound, James Joyce… o movimento concretista foi lançado publicamente no Brasil na Exposição Nacional de Arte Concreta, entre dezembro de 1956 (São Paulo) e fevereiro de 1957 (Rio de Janeiro). Essa nova forma de poesia, que se funda sobre uma tradição da poética visual, é definida como “um elemento da teoria da comunicação e da semiótica”. A frase é desorganizada, o discurso partido com suas próprias palavras desordenadas, com a intenção de criar novas relações entre elementos sintáticos, procurando mesmo romper com sua própria sintaxe. O espaço gráfico toma um novo papel no poema. Almandrade sente-se como um artista gráfico conversando com a literatura e quer afirmar que a poesia faz também parte das artes visuais.
Sob a forte influência da poesia concreta, o próprio nome do artista se torna assim sua primeira obra: “Antônio Luiz M. Andrade, cujas iniciais formam A.L.M.A., daí o compósito ‘Almandrade’. Mas esse é o país dos “Andrades”: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade… Destaco que ‘Almandrade’ lembra também o proparoxítono “Sousândrade”. Assim temos uma reunião de nomes de poetas marcados pela irreverência, pela ousadia e, principalmente, pela radicalidade da invenção’, comenta o professor Jayro Luna.
A obra do Almandrade nos convida a descobrir o que está oculto, propõe uma performance visual que obriga o observador a cruzar as informações, descobrir os sons ritmados de sua leitura para poder apreciar plenamente a obra. Esse minimal é muito mais complexo do que parece a primeira vista, e obriga a procura de chaves poéticas para os diferentes ângulos abordados. Seu repertório é geralmente limitado a alguns signos e palavras. O artista leva a linguagem a seus limites e se dá o direito de transformar a ordem e o significado das coisas. É importante para ele inventar outras relações com o mundo e seu cotidiano. “A grande riqueza visual aliada à semântica da proposta fazem de Almandrade um dos mais criativos operários da linguagem. Um construtor” escreveu Gutemberg Cruz.
“A mão do poeta inventa e relaciona imagens, mobiliza o pensamento de quem olha na busca de uma história, ou melhor, de uma pré-história das artes gráficas e sua poética. Uma performance da visualidade que viaja no tempo e exige de nós uma contemplação provocante”, escreve o artista.
A exposição na Baró Galeria propõe uma série de desenhos poéticos ou poemas objeto que o artista realizou entre 1970 e 2000 e que ilustram de maneira brilhante os pontos que acabamos de expor.
Escultura, ‘assemblage’ feita com objetos simples do cotidiano, desenhos, gravuras, todas suas obras participam de uma sutil base de humor, de onde nasce todo o prazer. Ele nos faz pertencer a um mundo inteligente onde é possível conviver com o real. Seu vocabulário gráfico rigoroso, com uma economia de meios, os jogos de formas, às vezes de oposições cromáticas, propõem obras mínimas, sutis e sem falsificações.
Almandrade joga com o cheio e o vazio e ainda com seus textos que colocam o espaço natural em questão, nos obrigando a procura pelo entendimento de seus enigmas. A partir de seus Ready Made mentais, de signos e de palavras simples, ele nos força ainda a refazer mentalmente o processo de construção da obra, podendo levar à frustração imposta pela dúvida. Suas obras silenciosas e sintéticas sob formas essenciais são aforismos visuais que conduzem a novas percepções e concepções.
Vários outros aspectos de sua obra estão apresentados na Baró Galeria: pinturas acrílicas sobre tela ou Eucatex dos anos 1980 até 2014 e exercícios tridimensionais, indo de grandes esculturas, composições coloridas que dialogam com os espaços generosos da galeria, evocando, em um interessante paradoxo, o rigor das formas de Franz Weissmann ou de Amílcar de Castro, mas também um labirinto de Hélio Oiticica. Poderíamos pensar ainda em Mondrian, com suas paisagens-composições refinadas, feitas de horizontais e verticais. Os diferentes planos que se interpenetram oferecem aos visitantes um jogo equilibrado de formas geométricas coloridas e arejadas, em algumas situações, por janelas de sombra e luz de tradição construtivista e minimalista. Como Francisco Antônio Zorzo chama atenção, Almandrade “intencionalmente mantém uma distância do barroquismo, do expressionismo e de outras tendências do tipo sensual muito recorrentes na arte baiana e brasileira”.
“A pintura é concreta e não abstrata porque nada é mais concreto, mais real do que uma linha, uma cor, uma superfície”, reivindicava Theo Van Doesburg e os membros do grupo de Arte Concreta formada em 1930, em Paris. Eles pregavam uma forma de arte não figurativa, tendo rompido com todos os outros processos de abstração do mundo real e privilegiando a manipulação direta e racional dos constituintes plásticos da obra de arte. Almandrade pertence a era do pós-construtivismo, incorporando a contribuição do neo-concretismo brasileiro e ainda a do movimento Poema / Processo, redistribuindo postulados da Arte Concreta por um diálogo precursor com a Arte Conceitual.
Também será apresentada a instalação ‘Jardim para meditação ou Natureza Morta’. Linha no horizonte: elástico vermelho tenso, energia. O sujeito que olha ocupa um espaço, o físico e o emocional em ação, solitário diante da obra de arte ou do mundo. Sensação de equilíbrio / desequilíbrio. O homem, o outro e a natureza. Desperdício? Não, Natureza Morta. Fósforos usados, lixo, índice de fogo, de luz, de energia consumida. Madeira queimada e o meio ambiente. Um tema e um lugar no inconsciente da arte. – Mas que relação pode existe entre elástico tenso, fósforos queimados, natureza, o ser, o ente e a arte? – Impossível verbalizar, afirmava o Almandrade em 1992. Na história do homem a conquista de um lugar físico, sempre foi uma meta e esta conquista se dá muitas vezes à custa de muitos prejuízos. O esforço do homem em conquistar o meio ambiente como se não fizesse parte dele, motivado por interesses econômicos, tem um preço muito caro. Não é tarefa de a arte interrogar este preço, mas ela pode contribuir para despertar uma consciência sobre as necessidades ambientais, sociais e espirituais (porque não) do ser humano. A estratégia é ocupar o espaço com a experiências da arte e deixar para os espectadores a responsabilidade de fazer as relações com o cotidiano e os problemas que o planeta enfrenta e arte contemporânea. Mais uma vez a partitura do Almandrade se entrega aos destaques dessa instalação, para as quais ele leva o seu público. Como sempre Almandrade propõem e este o interpreta, ‘échappée belle de l’art’…
Marc Pottier
Agosto 2015.